Neste novo parágrafo, Paulo deixa de argumentar a partir da lógica exposta em perguntas retóricas e passa a fazer uso de argumentos escriturísticos. Inúmeras citações do Antigo Testamento são feitas a partir do v. 6. Com elas, Paulo repisa a tese de que a justificação é pela fé, independentemente das obras da lei mosaica.
É bom destacar que o largo uso de citações bíblicas feito por Paulo mostra como o Apóstolo tinha em alta conta a Sagrada Escritura. De fato, quando deseja provar a veracidade de seu ensino recorre a ela muito mais do que ao raciocínio lógico, mostrando que a tinha como palavra final nas questões que estava discutindo. Essa visão da Bíblia como fonte última de autoridade tem sido abandonada pelos cristãos modernos, o que redunda em tristes prejuízos doutrinários e morais. Apelar para o que o texto sagrado diz na hora de dirimir questões de fé e conduta é prática que deve ser resgatada pelos crentes de hoje.
No v. 6, portanto, Paulo, citando Gênesis 15.6, introduz o exemplo de Abraão como prova bíblica de que a justificação é pela fé. De fato, o texto de Gênesis ensina que foi a fé que Abraão teve e não a sujeição a regras que o levou a ser considerado justo diante de Deus. Aliás, esse exemplo de Abraão foi citado por Paulo com o mesmo objetivo cerca de nove anos mais tarde, na Epístola aos Romanos. Ali, o Apóstolo expõe de modo ainda mais completo o fato do grande patriarca da nação judaica ter sido justificado somente por ter crido em Deus e ainda antes de ser circuncidado (Rm 4.1-3, 9-10, 13). Esse fato tinha relevância especial no combate aos ensinos dos falsos mestres da Galácia que impunham aos crentes a necessidade da circuncisão caso quisessem ser salvos (5.2-6; 6.12-13).
Entretanto, esse uso reiterado que Paulo faz de Gênesis 15.6 pode levantar objeções. Isso porque, aparentemente, o objeto da fé de Abraão não foi idêntico ao objeto da fé cristã. Abraão, mesmo sendo já velho e não tendo nenhum filho, creu na promessa de que Deus faria uma grande nação a partir de um descendente seu (Gn 15.4-6). A fé cristã, por sua vez, tem um foco distinto. Por ela o crente crê que Jesus Cristo é o Filho de Deus que morreu e ressuscitou pelos nossos pecados, depositando nele sua confiança para a vida eterna. Parecem, portanto, bem distintos os contornos que caracterizam a fé de Abraão e a fé dos crentes em Cristo. Como, então, Paulo pôde compará-las?
A resposta a essa questão pode ser obtida observando-se Romanos 4.18-22. Nesse texto, especialmente nos vv. 20-21, Paulo deixa claro de que modo a fé de Abraão se identifica com a dos cristãos. À luz desse texto, o patriarca creu no que Deus prometeu (Hb 11.11) e os cristãos fazem o mesmo ao crerem nas promessas que Deus fez em seu Filho (2Tm 1.1; Hb 9.15; 10.23; 2Pe 3.13; 1Jo 2.25). Além disso, Abraão creu que Deus era poderoso para cumprir sua promessa. Ora, também os cristãos, quando creem na promessa de que em Cristo receberão o dom da vida eterna não duvidam que Deus é poderoso para cumprir sua palavra (Fp 3.21). Nesse aspecto, a fé de Abraão e a dos cristãos se harmonizam plenamente, sendo sob esse ângulo que Paulo traça um paralelo entre elas.
O que não se pode perder de vista aqui é o ponto central que Paulo quer realçar, ou seja, que a justiça só é creditada ao homem que tem fé. A resposta à velha pergunta do coração de Jó (Jó 9.1-2), foi dada pela Escritura na história da Abraão (Gn 15.6) e expandida no Novo Testamento pela pena do Apóstolo Paulo.
No v. 7, Paulo leva o leitor à implicação do que foi dito no versículo anterior: se Abraão foi justificado pela fé, os verdadeiros filhos dele são aqueles que creem. O ensino de que os crentes são descendentes de Abraão aparece algumas vezes, direta ou indiretamente, no Novo Testamento (Rm 2.28-29; 4.11-12; Gl 6.16; Fp 3.3). Esse ensino realça, basicamente, que os crentes, independentemente se sua origem racial, quando creram em Cristo passaram a desfrutar das bênçãos espirituais prometidas a Israel (Rm 15.27; Hb 8.8-12 cp. 9.15).
Aqui é necessário fazer uma ressalva. O fato de Abraão ter uma descendência espiritual não implica a desconsideração de sua descendência física. O Israel “segundo a carne” obviamente ainda existe e ocupa um lugar no plano de Deus (Rm 3.1-2; 9.1-5; 11.1-2, 11, 25-29). A igreja não surgiu para substituí-lo, mas sim para entrar na sua herança (Rm 11.17-18; Ef 2.12-13; 3.5-6). É, portanto, errado dizer que a igreja agora é o novo Israel (1Co 10.32). É claro que dentro da igreja, judeus e gentios são um só, não havendo diferença entre ambos (1Co 12.13; Gl 3.26-28; Ef 2.11-16; Cl 3.11). Mas no aspecto externo, a igreja não se confunde com Israel, sendo ambos distintos, ocupando espaços diversos na visão e nos decretos de Deus.
Um dos benefícios oriundos dessa visão se relaciona com o modo como o crente entende as promessas de bênçãos materiais feitas a Israel no Velho Testamento. O povo judeu recebeu de Deus promessas de saúde e prosperidade caso fosse obediente. Também recebeu promessas de castigo, caso fosse rebelde (Dt 28). Entendendo erradamente que a igreja é o “novo Israel de Deus”, muitos intérpretes da Bíblia tentam aplicar essas promessas aos crentes de hoje. Nessa tentativa, alguns espiritualizam aquelas promessas, dizendo que elas são simbólicas e não devem ser entendidas literalmente. Um outro grupo, fugindo da alegorização, cai na chamada Teologia da Prosperidade, ensinando que os crentes, sendo o novo Israel, podem desfrutar daquelas promessas de riqueza e saúde num sentido real e concreto, devendo também temer maldições que afetem suas finanças e seu corpo. Essas duas vertentes estão erradas e as conclusões falhas de ambas, ainda que distintas, apoiam-se no mesmo falso pressuposto, a saber, que a igreja é o Israel moderno.
Para que evitemos, portanto, esses erros, mantenhamos nítida em nossa mente a seguinte verdade: como crentes procedentes dos gentios somos considerados descendência de Abraão porque, em Cristo, como herdeiros daquela patriarca, participamos das promessas feitas a Israel. Isso, porém, não nos torna substitutos de Israel, que continua ocupando um lugar de importância nos propósitos do Senhor. Decididamente, o estranho que participa da herança por meio de um testamento não anula com isso os direitos dos herdeiros naturais. Também o cãozinho maroto que bebe o leite da vaca, não vira bezerro, nem toma o seu lugar.
Conforme se vê, o ensino do v. 7 é que os que crêem em Cristo adquirem o status de herdeiros de Abraão, mesmo não descendendo fisicamente dele. Dessa forma, por meio da fé, pessoas de todo o mundo e das mais diversas famílias, podem participar das promessas feitas ao velho patriarca e serem abençoadas com ele. Crendo em Cristo, elas participam da promessa da herança, feita a Abraão. De fato, é claramente isso o que o Apóstolo diz nos vv. 8 e 9. Neles as palavras de Gênesis 12.3, a saber, “por meio de você todas as nações serão abençoadas”, significam que quem crê como Abraão, independentemente de sua origem racial, desfruta junto com Abraão da promessa que lhe foi feita de ser herdeiro do mundo (Rm 4.13)
A descendência espiritual de Abrão, porém, não exclui do plano de Deus sua descendência física. A igreja não substitui Israel. Ela desfruta das bênçãos prometidas à nação judaica, mas não ocupa seu lugar nem confunde-se com ela (Rm 15.27; Ef 2.12-13; 3.5-6). Na verdade a igreja se subroga em alguns direitos de Israel, mas não se torna Israel. A distinção essencial entre os dois povos permanece e Deus trata a ambos de forma distinta, reservando um lugar diferente em seu plano para cada um deles.