É provável que em qualquer lugar do mundo seja conhecida a famosa figura do “tio Sam” apontando o dedo para quem a vê e dizendo “eu quero você para o Exército dos EUA” (I want you for U.S. Army). Trata-se de uma personificação do próprio País, os Estados Unidos da América, usada pela primeira vez em 1812, na guerra anglo-americana, e desenhada mais ou menos como conhecemos em 1852. Entretanto, aquele famoso cartaz com o poderoso chamado a integrar o Exército americano data da Primeira Guerra Mundial, quando os americanos estavam recrutando soldados para combater na Europa. A necessidade fez com que esse chamado fosse revestido de patriotismo – basta ver as cores e as estrelas estampadas nas vestes do tio Sam –, pois a necessidade de reforçar as fileiras militares americanas era grande. Muita gente orgulhosamente aceitou esse convite, partiu de casa e jamais voltou.
O Salmo 117 também é um chamado em larga escala. Também convida pessoas de lugares distantes a seguir um líder que os inspira. Também há um pano de fundo glorioso que embeleza e reforça o chamado. E os homens que respondem positivamente a esse chamado jamais voltam a ser os mesmos, aceitando partir para outra pátria (Fp 3.20). A diferença é que, em lugar de perderem a vida ao atender ao chamado, esses passam a viver. Em lugar de morrerem em outra terra, herdam a terra toda e a própria vida. E em vez de seguirem um personagem fictício, eles seguem um líder real, majestoso e excelso que lhes conduz às bênçãos que o restante do mundo nem pode imaginar. Esse salmo é o mais curto de todo o saltério, mas seu alcance, sua mensagem e sua glória colocam esse capítulo entre os mais significativos da Bíblia. Em seus dois versículos, ele leva até os confins da Terra um chamado rico em teologia, cujos efeitos práticos se estendem até o futuro e até os céus. Três pontos notáveis devem ser destacados nele.
O primeiro ponto notável desse salmo é para quê é o chamado. O salmista convida seus ouvintes a prestar o devido louvor que cabe ao Deus Todo-poderoso e Todo-glorioso (v.1): “Exaltai ao Senhor, ó todas as nações, louvai-o, ó todas as tribos” – notar os destaques em itálico. Deus, em si mesmo, é digno de todo louvor. Acrescentem-se a isso suas obras louváveis. O resultado é que Deus criou o homem e o separou das trevas, por meio de Cristo, “a fim de sermos para louvor da sua glória” (Ef 1,12). A própria nação israelita foi separada por Deus para tanto e é chamada por ele de “povo que formei para mim, para celebrar o meu louvor” (Is 43.21). Duas palavras com sentidos semelhantes – “exaltai” e “louvai” – são utilizadas no primeiro versículo do salmo para descrever a adoração devida a Deus. Entretanto, apesar de sinônimas, uma enfatiza o ato do louvor e da exaltação, enquanto a outra produz a ideia de uma reflexão sobre as qualidades gloriosas de Deus e, em meio à admiração, enaltecer o Senhor por tudo que ele é e faz. Talvez, as duas palavras entrem nessa composição não apenas para cumprir um efeito de estilo literário, mas para pintar um quadro bem amplo da adoração que o Senhor merece de nós, servos do seu amor.
O segundo ponto notável do salmo é para quem é o chamado. Apesar de ser escrito por um israelita para o louvor de Deus em Israel, ele se dirige a povos gentílicos, ou seja, pessoas não israelitas (v.1): “Exaltai ao Senhor, ó todas as nações, louvai-o, ó todas as tribos” – observar as mudanças dos destaques em itálico. Levando em conta que os israelitas não deviam se misturar com as outras nações – “as gentes”, os “gentios” –, esse convite é surpreendente. Israel foi proibido de fazer aliança com outros povos (Ex 34.12), de imitar suas religiões (Ex 34.13-15) e até de se unirem a eles por meio de casamentos (Ex 34.16). As outras nações eram consideradas inimigas de Deus e de Israel, de modo que os israelitas aguardavam o dia de ver o Senhor abater tais povos (Am 5.18 cf. Ob 15). Por isso, o chamado e a esperança de ver pessoas de outras nações se curvando diante do Deus de Israel e lhe rendendo adoração de modo algum era fruto de um trabalho poético puramente humano, mas da revelação de Deus quanto aos seus planos para o futuro. Como instrumento da revelação da Palavra de Deus, o profeta Isaías anunciou: “Por isso, glorificai ao Senhor no Oriente e, nas terras do mar, ao nome do Senhor, Deus de Israel. Dos confins da Terra ouvimos cantar: Glória ao Justo!” (Is 24.15,16). É claro que não é cada pessoa do mundo que atenderá esse convite. Não obstante, o chamado tem um caráter mundial demonstrando que, independente de quem louvará ou não a Deus, o Senhor tem direito sobre todos e dá a conhecer os seus atributos gloriosos tanto nos seus servos como nos seus inimigos (Rm 9.22-24).
O terceiro ponto notável é a causa do chamado. Se o convite é para oferecer louvor a Deus, a causa para tanto é dupla. A primeira delas é o “amor de Deus” (v.2a): “Pois grande é o seu amor para conosco”. A palavra aqui traduzida como amor pode também ser entendida como graça, bondade ou misericórdia. Entretanto, não é necessário escolher um desses sentidos. Em lugar disso, deve-se somá-los como demonstração ampla do que significa ser amado por Deus. Quer dizer que a misericórdia amorosa de Deus entra em ação para perdoar pessoas que não merecem esse benefício. Por isso, agora o salmista não vislumbra apenas os gentios, mas também Israel ao dizer “para conosco”. O “vós” se torna “nós” quando a graça de Deus salva israelitas e também gentios, tornando-os um grupo coeso de servos, unidos de modo fundamental por meio da obra de Cristo, acabando com os limites e com a separação: “Mas, agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo. Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um [...] para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade” (Ef 2.13-16). “Ambos”, nesses dizeres de Paulo, são os “crentes gentios” e os “crentes israelitas”, unidos pela fé em Cristo e pela justificação de pecados.
A segunda causa para o chamado a louvar é a “fidelidade de Deus” (v.2b): “E a fidelidade do Senhor permanece para sempre”. Por fidelidade, na teologia do Antigo Testamento, entende-se o inevitável cumprimento, por parte de Deus, das promessas que fez. Se ele prometeu, é certo que ele honrará sua fidelidade e cumprirá a promessa. A questão aqui é “que promessa?”. A aliança mosaica, que previa bênçãos pela obediência e castigo pela rebeldia (Lv 26; Dt 28), foi feita entre Deus e Israel e não dizia respeito às outras nações. Em um chamado de natureza mundial como esse, que promessas tornariam os gentios interessados em ver a fidelidade do Senhor? A resposta não se acha no Sinai, mas em outro chamado: o de Abraão (Gn 12.1-3). Quando Deus lhe prometeu uma nação numerosa e uma terra para habitar, ele também lhe prometeu que ele seria veículo de benção dentro da sua família, mas também fora dela: “Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12.3). É claro que Abraão por si só não pode salvar ninguém, mas, por meio de Cristo, seu descendente (Gl 3.16), a bênção prometida a pessoas de “todas as famílias da Terra” seria efetivada: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar [...] para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em Jesus Cristo, a fim de que recebêssemos, pela fé, o Espírito prometido” (Gl 3.13,14). E essa promessa é cumprida em toda parte por meio da fé no Senhor Jesus.
É por isso que esse pequenino salmo é tão grandioso no saltério e nas Escrituras. Ele revela quem é Deus, quão glorioso é ele e para que existem o universo e, principalmente, a humanidade. Ele também expõe o desejo do Senhor de salvar pessoas de todas as nações, raças, tribos e povos, os quais devem se curvar diante da sua majestade. Finalmente, ele revela atributos como amor, misericórdia, graça, verdade e fidelidade pelos quais o Senhor mantém firmes seu propósito e seu curso de ação, mesmo quando a humanidade dá provas de que merece imediatamente ser extinta. Não é sem razão que esse pequeno cântico está entre um grupo de salmos que bradam (v.2c): “Exaltai ao Senhor!”. Deus é, sim, digno de todo louvor, tanto por parte de judeus como de gentios que têm fé em Cristo para perdão de pecados. Então, ergamos juntos nossas vozes a Deus e proclamemos por toda parte que só ele é Senhor. É para isso que existimos: “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9).