Quando o cientista cristão Michael Faraday (1791-1867) – responsável por diversos conhecimentos físico-químicos cujo valor e utilidade perduram até hoje – se aproximava da morte, um repórter lhe perguntou sobre as especulações que ele tecia sobre a vida após a morte. Sem meias-palavras, ele respondeu: “Especulações? Não sei nada sobre especulações. Eu repouso sobre certezas. Sei que meu Redentor vive. E, porque ele vive, eu também viverei”.
O Salmo 105 foi escrito por alguém – talvez Davi ou Asafe – que também conhecia a atuação de Deus e, por isso mesmo, o glorificava sabendo quem ele é. Apesar de o contexto histórico não ser declarado no salmo, 1Crônicas o localiza na ocasião em que a arca foi levada a Jerusalém por Davi. O texto de 1Crônicas 16.8-22 é praticamente idêntico ao Salmo105.1-15 – os salmos 96 e 106 parecem ter sido compostos na mesma ocasião (Sl 96.1b-13a cf. 1Cr 16.23-33; Sl 106.1b,47,48 cf. 1Cr 16.34-36). Sabendo que um dos piores castigos impostos pelo Senhor foi a perda da arca para os filisteus (1Sm 5.1-12) e seu retorno parcial a Israel (1Sm 6.1 – 7.1), a volta da arca ao culto israelita era uma bênção de natureza magnífica. Mesmo parecendo que esse dia nunca chegaria, o salmista olha para o passado, demonstra a mesma confiança nos feitos divinos de cristãos como Faraday e cita as maravilhas que o Senhor já havia feito ao seu povo (vv.1-6) – há uma ênfase nos feitos de Deus (vv.1,2,5) por meio das expressões “seus feitos” (‘alîlôtayw), “seus atos maravilhosos” e “seus milagres”. Assim, tais feitos maravilhosos demonstravam para o salmista e para seus irmãos que o Senhor, cujo poder e bondade ficaram patentes no passado, voltaria a beneficiá-los e cumpriria todas as promessas que fez – o retorno da arca era um desses benefícios.
Assim, o primeiro feito maravilhoso de Deus em benefício do seu povo exposto no salmo foi a eleição do povo da promessa (vv.7-11). A existência de Israel se devia inteiramente à ação divina. Abraão nunca teria uma descendência (Gn 11.29,30) caso o Senhor não o tivesse escolhido e chamado para o abençoar (Gn 12.1 cf. Ne 9.7, Is 41.9) – a eleição de Abraão coincide com a própria eleição de Israel (v.6): “Descendência de Abraão, seu servo, filhos de Jacó, seus escolhidos”. Ao chamar Abraão, Deus lhe fez promessas maravilhosas de uma descendência numerosa e de bênçãos para ele, para seu povo e até para pessoas de outras nações (Gn 12.1-3). Depois, lhe prometeu uma terra para habitação da sua descendência pela perpetuidade (Gn 13.14,15). Na verdade, para que Abraão e seus descendentes não fossem tomados de dúvidas, o Senhor selou uma aliança formal com o patriarca (Gn 15.17-21) – que conhecemos como “aliança abraâmica” – à qual o salmista faz menção (vv.8,9a): “Ele se lembra perpetuamente da sua aliança, a promessa que decretou para mil gerações, à qual prometeu a Abraão”. Se Israel possuía uma terra, esse era o resultado de uma promessa bem específica do Senhor e do seu cumprimento soberano (vv.10,11).
O segundo feito maravilhoso foi a proteção na fraqueza (vv.12-15). Levou 25 anos para se cumprir a promessa do nascimento de Isaque (Gn 21.5 cf. 12.4) e sessenta anos para o nascimento de Jacó (Gn 25.20,26). Este migrou para o Egito quando sua família contava com apenas setenta pessoas (Gn 46.27; Dt 10.22). Durante todo esse tempo – entre 2091 e 1876 a.C. –, sendo um pequeno e desprotegido contingente sem terra própria (vv.12,13), o Senhor protegeu a pequena família da promessa (v.14a): “Não permitiu que homem [algum] os oprimisse” (lo’-hinnîah ’adam le‘oshqam). Nos 215 anos entre o chamado de Abraão e o benefício e proteção do Faraó à família de Jacó, muita coisa podia ter dado errado, como nas vezes em que Sara, esposa de Abraão, foi tomada para ser esposa do Faraó (Gn 12.10-20) e do rei de Gerar (Gn 20.1-18), quando Abraão temia por sua vida. Entretanto, Deus repreendeu até mesmo reis como esses para garantir o cumprimento das suas promessas (vv.14b,15): “Mas repreendeu reis por causa deles, [dizendo]: ‘Não ponhais a mão em meus ungidos, nem sejais maldosos com meus profetas’”.
O terceiro feito foi a direção por intermédio de dificuldades (vv.16-25). O Senhor prometeu uma nação numerosa ao patriarca Abraão e avisou-lhe que não seria na terra da promessa que o crescimento ocorreria (Gn 15.12-16). Para colocar o plano em ação, Deus se valeu de diversas dificuldades na vida dos seus servos. Em primeiro lugar, enviou José como escravo para o Egito (v.17): “Enviou adiante deles um homem, vendido como escravo, [a saber] José”. O que parecia ser um desfavor, revelou-se uma providência de Deus a fim de colocar José como governador no Egito, abaixo somente do faraó (Gn 41.40-44), cumprindo o plano perfeito do Senhor (v.19). O próximo passo foi enviar a fome ao mundo (v.16), o que obrigou a família de Jacó a buscar suprimentos no Egito, favorecendo o reencontro de José com sua família e o traslado da casa de Jacó (v.23) a um terra propícia para que, em quatro séculos, a pequena família se tornasse um povo numeroso. Em último lugar, o Senhor deliberadamente fez com que os egípcios oprimissem os israelitas a fim de preparar o pano de fundo para sua libertação maravilhosa (v.25): “Transformou o coração deles a fim de odiarem seu povo e usarem de esperteza para com os seus servos”. “Escravidão”, “fome” e “opressão”, que normalmente são consideradas maldições, foram as ferramentas de Deus para abençoar e dirigir seu povo.
O quarto feito foi o crescimento surpreendente (v.24): “Ele multiplicou o seu povo abundantemente e o tornou mais poderoso que seus adversários”. A pequena família de Jacó, em um período de 430 anos (Ex 12.40), teve um crescimento incrível a tal ponto de serem contatos, na sua partida do Egito, 600 mil homens (Ex 12.37). Se considerarmos que, para cada homem haveria também uma mulher, além de meninos em idade de não serem contados entre os homens, o número de israelitas do êxodo não pode ter sido menor do que 2 milhões de pessoas. Esse crescimento é tão surpreendente que estudiosos como Carl Friedrich Keil e Franz Delitzsch tiveram de fazer contas para provar, em seu livro que trata da teologia do Pentateuco, que tal crescimento era matematicamente possível. Porém, ainda que possível, ele não deixa de ser surpreendente e prova do poder e das maravilhas de Deus.
O quinto feito maravilhoso foi a salvação da escravidão (vv.26-38). Por meio de um servo improvável – Moisés (v.26) –, Deus fez grandes maravilhas no Egito (v.27). As pragas lançadas sobre o país, além de o devastarem (vv.28-36), fizeram com que o nome do Senhor e seu feito libertador fossem conhecidos em toda parte. As nações que Israel saiu a conquistar passaram a sentir pavor dos israelitas e do seu Deus (Ex 15.14-16), assim como o próprio Egito se sentiu (v.38): “O Egito se alegrou quando eles saíram, pois lhes sobreveio um pavor deles”. Além da saída em meio ao poder de Deus, a salvação foi plena a ponto de deixarem o Egito também com riquezas, conforme a promessa que Deus fez a Abraão (Gn 15.14), mostrando que nada daquilo era fruto do acaso (v.37): “E os fez sair com prata e ouro”. Além disso, para garantir a salvação completa que envolvia uma longa viagem a pé, Deus cuidou para que, na ocasião, não houvesse quem não pudesse marchar, de modo que ninguém fosse deixado para trás: “E entre as suas tribos não havia [nenhum] manco”.
O último feito maravilhoso de Deus em benefício do seu povo foi o suprimento das necessidades (vv.39-45). Apesar de passarem quarenta anos em um lugar que não possuía condições propícias para a sobrevivência de um povo tão numeroso, o Senhor os protegeu do Sol forte e do frio da noite (v.39) e enviou milagrosamente comida dos céus (v.40) e águas que brotaram de rochas (v.41). Cumprindo, enfim, a promessa ao patriarca (v.42) da necessária terra para a habitação do seu povo (v.44), passou a tratar-lhes conforme a aliança que fez com eles no Sinai (v.45 cf. Ex 19). Eis a razão pela qual, ao fazer retornar a arca ao culto israelita, em Jerusalém, o salmista recordou de todas as maravilhas que Deus lhes havia feito no passado.
Da mesma forma, a igreja primitiva também começou pequena, por meio da eleição de servos humildes dentre o povo (Mc 3.13-19), foi protegida quando poderes violentos se abateram sobre ela (Mc 4.38,39), experimentou a expansão por meio da perseguição que sofreu (At 8.1), viu um crescimento que espantou e alarmou as pessoas ao redor (At 2.41; 6.7; Cl 1.6), testemunhou a salvação de um povo que vivia escravizado pelo pecado (Rm 6.17,18) e foi suprida de maneira maravilhosa (Fp 4.18; 1Co 16.1-4; 2Co 11.9 cf. Mt 6.11; Lc 12.22-31). Na verdade, essa dinâmica, de modo cíclico, se repetiu muitas vezes durante a história. Por isso, ainda hoje, muito tempo depois da sua fundação, nós, igreja de Cristo, continuamos confiando no seu poder e repetimos o que o salmista disse ao concluir seu cântico (v.45): “Que o Senhor seja exaltado!”.