O famoso tenor italiano, Enrico Caruso (1873-1921), teve uma experiência muito interessante. Certa vez, enquanto dirigia seu carro na região norte do Estado de Nova York, teve um problema mecânico que o obrigou a interromper a viagem e buscar o socorro em uma pequena fazenda. Enquanto o carro era consertado, Enrico Caruso desfrutou da hospitalidade do dono da propriedade em uma agradável conversa. Passado algum tempo, o fazendeiro perguntou seu nome e ele respondeu: “Caruso”! O fazendeiro, então, tomado de emoção, saltou da cadeira, apertou a mão do cantor e exclamou: “Eu nunca pensei que um dia veria um homem como o senhor em minha cozinha! Caruso!”. Enquanto o tenor se preparava para agradecer a expressão de admiração, o fazendeiro completou: “... Robinson Caruso, o grande viajante!”. Enrico Caruso ficou surpreso por ser confundido com outro homem – Robinson Caruso, também conhecido como Robinson Crusoé – e percebeu que ninguém é tão famoso e conhecido quanto pensa.
Diferente da experiência de Caruso, o alvo de admiração no Salmo 114 é alguém que não pode ser confundido nem ignorado, a saber, o próprio Senhor glorioso. Trata-se de um salmo com quatro estrofes de duas linhas cada – um tipo de corinho. Sua mensagem é emoldurada por uma linguagem fortemente figurada, mas não infértil. Contudo, pouca informação há sobre a ocasião da sua composição ou sua autoria. As mesmas formas verbais hebraicas peculiares contidas no Salmo 113 se repetem nesse salmo, fazendo parecer que foram escritos pelo mesmo autor, possivelmente na mesma ocasião – um período de livramento e restauração. Não é possível dizer com certeza que se trate do retorno do exílio babilônico ou de outro livramento específico. Entretanto, a ênfase na restauração misericordiosa dos desvalidos no Salmo 113 e a lembrança da libertação da escravidão egípcia no Salmo 114 fazem notar que o escritor quer louvar a Deus por uma atuação poderosa e benéfica para com Israel. Também não se pode eliminar a possibilidade de terem sido compostos para uma ocasião festiva como a Páscoa, na qual a lembrança da libertação do Egito era uma tônica. De qualquer modo, o salmista tem a intenção de glorificar a Deus pelo que fez no passado e pelo que fazia nos seus dias. Para isso, ele usa os versos do salmo para apresentar o Deus digno de louvor pelo modo com tratou a Israel.
Em primeiro lugar, o salmista apresenta um Deus que se faz imanente (vv.1,2). Imanência é a qualidade de Deus que o faz presente junto à criação, a qual permite que ele se relacione com suas criaturas – em especial, o homem. Isso é visto na intervenção histórica promovida por Deus em um momento crucial e de uma maneira marcante (vv.1,2): “Quando Israel saiu do Egito, a casa de Jacó, do meio de um povo de língua estranha, Judá passou a ser seu santuário e Israel, o seu domínio” (betse’t yisra’el mimmitsrayim bêt ya‘aqov me‘am lo‘ez haytâ yehûdâ leqodshô yisra’el mamshelôtayw). O salmista fez questão de expor a condição desfavorável dos israelitas no Egito ao dizer que estavam “no meio de um povo de língua estranha”. Isso aponta para o fato de estarem fora da sua terra e vivendo no meio de um povo diferente do seu, com costumes desiguais, com deuses estranhos. No Antigo Testamento, a figura da “língua estranha” é, também, um sinal de desfavor e de juízo divino para Israel por meio dos exércitos de nações estrangeiras (Dt 28.49,50; Is 28.11; Jr 5.15). Não resta dúvidas de que o povo estava em uma situação ruim que eles não desejavam, mas que não tinham condições de evitar.
Pois mesmo, contra todas as circunstâncias contrárias, Deus buscou Israel do Egito fazendo valer sua vontade e seu poder. O resultado é que aquele povo que não tinha uma terra, passou a ter. Aqueles que viviam entre deuses estranhos, passaram a servir o Deus verdadeiro. A nação que era propriedade do Egito, passou a ser posse declarada do Senhor soberano. Por isso, o salmo afirma que Israel passou a ser “santuário” e “domínio” de Deus. Como santuário, recebeu a presença de Deus como se fosse uma habitação, algo que era visualizado no meio do povo pela presença do tabernáculo. Como domínio – a palavra também pode ser traduzida como “seus súditos” –, o Senhor fazia valer o que prometeu ao povo da aliança: “E habitarei no meio dos filhos de Israel e serei o seu Deus” (Ex 29.45). É possível que esse salmo tenha sido escrito nos dias quando Israel estava dividido em dois reinos: Judá e Israel. Entretanto, a citação aqui desses dois termos não tem por objetivo fazer tal distinção, mas representar o povo como um todo por um meio de termos sinônimos: os dois nomes de Jacó. Esse povo, quando Deus se fez presente, deixou de habitar entre seus dominadores e passou a ser habitação daquele que poderosamente os tornou seu domínio, seus próprios súditos.
Depois, o escritor do salmo apresenta um Deus poderoso e irresistível (vv.3-6). Se a primeira estrofe do cântico evidenciou as bênçãos da presença de Deus, as duas estrofes centrais realçam seu poder ao efetivar a libertação. Esses versículos não são específicos nas ações de Deus, mas não é necessário. A história do êxodo era tão conhecida dos israelitas e até das outras nações que bastava citar os elementos envolvidos no decorrer do livramento e da conquista da terra da promessa para que os fatos viessem todos à mente dos ouvintes. Por isso, bastou uma breve citação para trazer à memória do povo os episódios do mar Vermelho e do rio Jordão (v.3): “O mar viu isso e fugiu. O Jordão retrocedeu” (hayyam ra’â wayyanos hayyarden yissov le’ahôr). As menções são à abertura do mar, como se as águas fugissem diante do poder do Senhor, e do estancamento do Jordão para que o povo entrasse em Canaã em seco, sem dificuldades.
Faz-se, a seguir, menções de montes tremendo (v.4): “Os montes saltaram como carneiros. As colinas, como filhotes de ovelha” (heharîm roqdû ke’êlîm geva‘ôt kivnê-tso’n). A menção não é tão óbvia quanto a das águas, podendo – o mais provável – apontar para os episódios ligados à demonstração da glória de Deus no Sinai ou para a queda das cidades cananitas durante a conquista, boa parte delas sobre os montes. O que não traz dúvidas é que Deus atuou poderosamente para abençoar seu povo. Esse poder foi tão arrebatador que o salmista praticamente repete o que disse, porém, na forma de interrogações (vv.5,6): “O que te acontece, ó mar, que foges? [E tu], Jordão, [que] retrocedes? [E vós], montes, que saltais como carneiros? [E vós], colinas, como filhotes de ovelha?” (mah-leka hayyam kî tanûs hayyarden tissov le’ahôr heharîm tirqedû ke’êlîm geva‘ôt kivnê-tso’n). É nítida a ironia dessas perguntas cujos efeitos são retóricos. É como perguntar: “Quem pode impedir Deus de cumprir os seus decretos?”. Além de certa ironia, o efeito das perguntas dos vv.5,6 é enfático, produzindo respostas que indicam o “poder irresistível do Senhor”.
Finalmente, o salmista apresenta um Deus cuja presença é gloriosa (vv.7-8). Assim como as nações cananitas temeram os relatórios que ouviram a respeito do êxodo (Ex 15.14-16), o escritor do salmo afirma que a própria Terra deveria tremer diante do Senhor (v.7): “Treme, ó Terra, diante da presença do Senhor, diante do Deus de Jacó” (millifnê ’adôn hûlî ’arets millifnê ’elôah ya‘aqov). Essa personificação da Terra tem por objetivo atingir não os elementos da natureza, mas os homens, os ouvintes do salmo e da mensagem do que Deus fez a Israel. Nesse sentido, o salmista não aponta somente a mão de Deus poderosa para livrar, mas também para prover (v.8): “Aquele que transformou a rocha em uma fonte de água, a pedra, em manancial de água” (hahofkî hatsûr ’agam-mayim hallamîsh lema‘yenû-mayim). Mais uma vez a natureza tem sua força abatida por Deus e a rocha dura é fendida para brotar dela água que sacie os israelitas no deserto, como se a dureza da rocha se derretesse e fluísse diante da glória do Altíssimo. Não é possível estar diante de Deus e não tremer ante sua gloriosa presença.
Dá para entender por que esse salmo está colecionado ao lado de outras obras feitas para o louvor do Senhor. Talvez a Septuaginta, tradução grega do Antigo Testamento, tenha acertado ao colocar as últimas palavras do salmo anterior – “Exaltai ao Senhor!” (hallû-yah) – no início deste. Isso colocaria o Salmo 114 em um grupo que começaria no 111, todos exaltando a Deus com a famosa transliteração: “Aleluia!”. Entretanto, não temos de adivinhar a posição dessas palavras, mas notar a glória de Deus, o devido louvor e adoração que nos cabe e a reverência que deve ser produzida a partir da observação de quem o Senhor é. Que ninguém seja mais admirado por nós que o Deus Todo-poderoso; nem mais conhecido, amado, servido, anunciado e honrado! Treme, ó Terra, e tremei, vós homens!