Muitos homens durante a história foram reconhecidos como “mentes à frente do seu tempo” – alguns com justiça, outros não. Um que foi justamente reconhecido como um visionário, vislumbrou o futuro e até abriu caminho para inventos bem posteriores a ele foi Leonardo da Vinci (1452-1519). Apesar de ser mais conhecido como pintor e escultor, ele era também arquiteto e engenheiro, entre outras habilidades que possuía. Dos seus muitos projetos, um chama a atenção pela visão bem além do seu tempo. Foi o desenho de uma aeronave de asa espiral, chamada La Hélice, que lembra os modernos helicópteros. Os princípios físicos são plenamente respeitados no projeto de modo que, se fosse construída, ainda que não fosse perfeitamente funcional – talvez ela tivesse sérios problemas de estabilidade –, seria pelo menos viável. O projeto só não saiu do papel pela falta de um sistema de impulso que hoje temos por meio do uso dos motores. Mesmo assim, Leonardo da Vinci pode ser reconhecido como um visionário em sua época.
O Salmo 110 pode ter sido escrito, de certo modo, por um visionário – já que ele escreveu sobre eventos futuros de ideais perfeitos. A diferença é que Davi, diferente de Da Vinci, não o fez por criatividade ou por habilidade pessoal, mas pelas promessas de Deus e por revelação do Espírito Santo (Mc 12.36). Ele, a quem foi feita a promessa de um trono perpétuo por meio de uma dinastia que permaneceria para sempre (2Sm 7.11-17), vislumbrou o cumprimento futuro dessa aliança. Esse é um perfeito exemplo de um salmo messiânico, ou seja, que faz referências diretas ao Messias, o rei prometido da casa de Davi (Mt 22.42), cuja existência é eterna e divina (Is 9.6; Mq 5.2). Apesar de conter um texto com trechos de difícil tradução e interpretação, esse é um salmo muito citado no Novo Testamento, contendo grande importância teológica. Assim, dentro do vislumbre futuro de Davi, o Salmo 110 apresenta quatro visões ligadas ao Messias prometido.
A primeira visão é a de um trono divino (v.1a). Apesar de o Messias ter sido prometido como um descendente do rei Davi, aqui o próprio rei o descreve de modo peculiar. O salmista, pela ação do Espírito Santo (Mt 22.43,44), expõe o salmo como uma declaração de Deus ao Messias. Logo de início, Davi o descreve não como seu filho, mas como seu Senhor (v.1a): “Declaração do Senhor ao meu Senhor”. Curioso como Davi, no cargo de um rei, se coloca como súdito de um rei que lhe seria descendente – ele o faz ao chamá-lo de “meu” Senhor. Isso somente deixa de ser um contrassenso quando se percebe que, junto com a prerrogativa real, o Messias também possui natureza divina, motivo pelo qual Davi o reconhece como seu Senhor pessoal. Jesus se valeu justamente desse texto para defender sua divindade, dizendo: “Se Davi, pois, lhe chama Senhor, como é ele seu filho?” (Mt 22.45). Nesse sentido, o salmista, com a visão que tinha do Messias, bem poderia ter dito as mesmas palavras de Tomé: “Senhor meu e Deus meu!” (Jo 20.28). A palavra Senhor tem aqui, ao mesmo tempo, sentido de realeza e de divindade.
A segunda visão é a de um reino conquistado (vv.1b-3). Ainda que, como Deus eterno (Is 9.6 – “Deus forte” e “Pai da eternidade”), o Messias reina agora e sempre sobre o universo, o texto vislumbra um tipo de reinado bem pontual que não pode ser confundido ou diluído em seu domínio eterno sobre tudo e sobre todos. Em primeiro lugar, esse reinado seria futuro e ainda não era realidade nos dias em que o salmo foi escrito, pelo que Deus promete (v.1b): “Assenta-te à minha direita até que eu ponha os teus inimigos por estrado para os teus pés”. Além de percebermos que o Messias desfruta das mesmas prerrogativas de Deus – assentar-se ao lado direito de um rei significava compartilhar com ele do seu reinado, na função de um regente –, notamos que o início do seu reinado aguardava o tempo de Deus abater e submeter seus inimigos – observe a expressão “até que”. Desse modo, não obstante o Messias reinar sobre a criação desde sempre, o reinado do qual Davi fez menção somente ocorreria no futuro. Em seguida, Deus se dirige ao Messias e garante que seu reinado partiria de Jerusalém e dominaria o mundo (v.2): “O Senhor enviará de Sião o cetro do teu poder. Domina no meio dos teus inimigos”.
Nessa ocasião, Israel se apresentará como exército para servir seu rei e por ele lutar (v.3): “O teu povo se oferecerá voluntariamente no dia do teu poder”. “Dia do teu poder” significa o tempo em que o Messias levará o seu poder vencendo os inimigos ao redor do mundo. O resultado desse voluntariado é descrito em um dos trechos mais difíceis de se traduzir de todo o salmo: “Os teus jovens, com santos ornamentos, serão como orvalho ao nascer da alvorada”. Parece que a ideia do salmista é dizer que, como o orvalho, que antes de nascer o Sol está por toda parte, assim o povo de Israel, como exército de Deus, estará por todo o mundo para promover o poder do seu Rei: “O restante de Jacó estará no meio de muitos povos, como orvalho do Senhor, como chuvisco sobre a erva, que não espera pelo homem, nem depende dos filhos de homens” (Mq 5.7). O que esses versículos querem transmitir é que o Messias, quando sair a conquistar seu reino, obterá vitória plena contra todos os inimigos em toda parte.
A terceira visão é a de um sacerdócio real (v.4). Esse é um texto que também exige uma visão ampla das Escrituras (v.4): “O Senhor fez um juramento e não voltará atrás: ‘Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque’”. Melquisedeque é apresentado como rei de Salém – Jerusalém – nos dias de Abraão (Gn 14.18). O mesmo texto o descreve como “sacerdote do Deus Altíssimo”. Quando Davi conquistou Jerusalém e a tornou sede do trono israelita, ele passou a agir também como um sacerdote, oferecendo sacrifícios e abençoando o povo junto aos sacerdotes levitas quando a arca foi trazida a Jerusalém (2Sm 6.17,18; 1Cr 15.26–16.6). Com isso, somos levados à compreensão de que uma das atribuições dos reis de Jerusalém, desde os dias de Melquisedeque, era ser também sacerdotes – prerrogativa que Davi tomou para si e transmitiu à sua linhagem. Por isso, o livro de Hebreus confirma o sacerdócio do rei Jesus, da linhagem de Davi, segundo a ordem de Melquisedeque (Hb 5.12; 6.20). Como rei de Israel com sede em Jerusalém (cf. v.2 – “Sião”), o Messias une em si os dois cargos, rei e sacerdote. Como rei ele rege o mundo. Como sacerdote ele intercede pelos seus.
A última visão é a de um tribunal soberano (vv.5-7). Aqui o Messias é novamente nomeado como Senhor (v.5): “O Senhor, [aquele] que está à tua direita, esmagará os reis no dia da sua ira”. Esse texto é compatível com a ideia da conquista do reino (vv.1-3). Entretanto, uma nova figura surge quando é dito que isso se dará não apenas por um impulso imperial, mas como resultado da justiça (v.6): “Ele julgará as nações enchendo-as de cadáveres” . Isso significa que o controle mundial exercido pelo Messias é também a ocasião quando os pecados dos homens serão castigados. Nesse sentido, há uma ênfase sobre o abatimento dos líderes das nações: “Esmagará os cabeças que governam sobre a Terra toda” . Seria possível traduzir essa frase como “ele esmagará cabeças por toda a Terra”, mas, traçando um paralelo com a ação do v.5 a os “alvos” de tal ação, é preferível compreender a palavra “cabeça” como uma referência aos “líderes”, ou aos “principais” dentre os povos. Desse modo, entende-se que grandes e pequenos sentirão a punição de Deus devido à sua maldade e rebeldia.
O salmo termina com a ideia de um procedimento contínuo do Messias, em seu reinado, no sentido se levar adiante o seu poder e a sua justiça sobre toda a Terra (v.7): “Ele beberá da torrente no caminho e, por isso, erguerá a cabeça”. A ideia produzida por esse texto é a de que, em meio à conquista, o Messias não desistirá do seu intento até completá-lo. Diferente de guerreiros que se cansam e têm de desistir da batalha (1Sm 30.9,10), ele se refrigera e continua avançando.
Quando olhamos para os evangelhos, vemos Jesus na figura de um servo que deu sua vida para nos salvar (Fp 2.6-8; 1Pe 3.18), contrariando as expectativas da época de assumir o trono israelita (Lc 24.21), expulsar os romanos e conquistar a terra prometida a Abraão (Gn 15.18-21) e trazer paz ao seu povo (Is 9.7) e ao mundo (Mq 4.1-3). Na verdade, até hoje Israel vive sem paz, sem o domínio pleno da terra da promessa, sem o controle de Jerusalém (cf. Lc 21.24) e sem um rei da descendência de Davi. Como Deus não mente e sempre cumpre o que promete, é certo que a esperança do salmista aguarda seu inevitável cumprimento. Por isso, nossa esperança reside no retorno de Jesus a Jerusalém (Zc 14.4 cf. At 1.10,11) para, a partir dali, trazer de volta os israelitas espalhados pelo mundo (Jr 23.5-8; Ez 36.24) e estabelecer seu reinado sobre o mundo (Dn 2.44,45; 7.13,14). Assim, ele aglutinará as funções de Rei divino sobre toda a criação e Rei de Israel que governa sobre as nações. Essa esperança, além de nos encher de coragem para continuar servindo a Deus em um mundo hostil ao Evangelho, nos dá o senso de responsabilidade de viver de maneira compatível com o caráter do nosso Rei. Por fim, nossa tarefa é viver hoje o que será comum ao “reino terreno” do Messias e, desde já, expandir seu “reino espiritual” por meio do testemunho das Boas Novas da salvação.