Um episódio marcante na história americana foi o julgamento, no século 19, envolvendo os “passageiros” do navio L’Amistad (“A amizade”, em espanhol). Eram escravos provenientes da África cujo destino era serem vendidos em Cuba. Liderados em um motim por Cinque, 53 escravos mataram quase toda a tripulação e obrigaram dois sobreviventes a levá-los de volta à África. Desconhecedores de princípios de navegação, não perceberam que foram, na verdade, conduzidos à costa dos Estados Unidos, onde, em agosto de 1839, a guarda costeira os deteve. Foram levados a um tribunal, acusados de homicídio, enquanto os sobreviventes da tripulação, a coroa espanhola e oficiais americanos reclamavam a posse dos escravos a fim de vendê-los. As coisas se complicaram ainda mais à medida que as eleições presidenciais se aproximavam e ameaçavam afetar o resultado do julgamento com motivações políticas.
Diante de tantos fatores externos e tantos interesses espúrios, o julgamento dos 53 passageiros do L’Amistad tinha tudo para contrariar todos os conceitos de “justiça”. Nesse momento, o ex-presidente John Quincy Adams, recorrendo à Suprema Corte dos Estados Unidos, lutou para que a justiça garantisse a liberdade e a recolocação daqueles homens ao seu país. O resultado final, já no ano de 1841, foi a confirmação da decisão do primeiro julgamento no sentido de libertá-los e entregá-los ao presidente para que os conduzisse de volta à África, declarando os 53 negros livres e dispensando-os imediatamente da custódia da corte. Certamente, essa decisão deu novos rumos à aplicação da justiça e à história norte-americana. É também uma decisão inspiradora, pois, a despeito de todos os interesses políticos e financeiros, a justiça realmente prevaleceu.
O rei Davi também recorreu à justiça suprema – não de uma corte, mas do supremo juiz. O Salmo 17 é um clamor por justiça diante dos fatos apresentados pelo salmista. Sua petição é “Senhor, ouça o que é justo! Escuta o meu clamor! Ouça a minha oração!”. É um clamor à suprema corte, ao único que pode decidir justamente e fazer valer a decisão.
A partir de então, as provas apresentadas pelo requerente, Davi, são, em primeiro lugar, seu procedimento justo. Não significa que ele nunca pecasse, mas que buscava obedecer ao Senhor e andar em consonância com sua santidade, fosse pela luta contra o pecado, fosse por meio da busca do perdão divino. Assim, ele diz (v.1) que sua causa “não vem de lábios mentirosos”. Diz ao Senhor (v.3): “Não encontras maldade nos meus intentos; a minha boca não transgride”. Ele completa o quadro (v.4) afirmando: “Eu me guardei dos caminhos do violento”. Essa é a descrição de um servo dedicado ao Senhor cujos procedimentos são moldados pelo bem e pela retidão. O que fala é verdadeiro; seus propósitos mais secretos são isentos da maldade; suas palavras são retas e produzem o bem e não atitudes traiçoeiras; suas atitudes são pacíficas e dignas de um homem cuja ética é santa.
Em segundo lugar, as provas apresentadas pelo requerente são os pecados dos seus inimigos que o perseguem e procuram uma oportunidade para matá-lo (vv.8,9). Davi diz (v.10) que “eles endureceram sua boca; falaram com arrogância”. Mas não é só isso. Davi ainda afirma que “os olhos deles estão postos [sobre os inimigos] para que caiam por terra” (‘ênêhem yashîtô lintôt ba’arets). Finalmente, para fins ilustrativos, Davi fala deles por meio de uma comparação (v.12), dizendo que “eles são semelhantes ao leão ávido para dilacerar a presa”. Esse é, definitivamente, um quadro de homens orgulhosos, mentirosos, perigosos, cujas ações contra aqueles que consideram inimigos são destruidoras.
Assim, Davi, com as provas sobre a mesa, apresenta (v.13) sua solicitação ao reto juiz: “Livra minha alma dos ímpios pela tua espada”. Essa é a causa do solicitante. Ele, mediante a apresentação dos seus retos caminhos, condição necessária para o clamor por justiça, e da perversidade dos seus inimigos, pede para que Deus o proteja de tais homens maus. É a última instância da justiça, visto que, ao que parece, ninguém mais pode ajudar Davi.
O fato é que o salmo não especifica a resposta do divino juiz. É bem possível que o salmo tenha sido escrito enquanto a perseguição ocorria, antes do livramento almejado pelo salmista. Os inimigos ainda perseguiam e Davi ainda esperava pela libertação. Entretanto, enquanto espera e sofre com a injustiça, o salmista demonstra uma atitude exemplar que deve inspirar todos os servos do Senhor ainda hoje. Ele diz (v.15): “Ao acordar, eu me satisfarei com o teu semblante”. Essa oração, um pouco misteriosa e intrigante, revela que o salmista, mesmo que ainda não tenha sido aliviado do seu jugo, sente-se suficientemente feliz e grato por ter “comunhão com Deus”, como se pudesse vê-lo face a face. Davi realmente desfrutava a presença do Deus vivo e isso lhe bastava, ainda que nutrisse a esperança do livramento.
Essa atitude exemplar de Davi não é gratuita. Ele conhece o Senhor a quem serve. E mais: ele ama seu Senhor e sabe muito bem que por ele é amado. Tem a perfeita noção do que tal relacionamento significa para sua vida presente e futura. De fato, temos de aprender com Davi e nutrir maior deleite no relacionamento com Deus a despeito de tudo que nos cerca. Afinal, o Senhor Deus é alguém com quem se pode ter a verdadeira e perfeita amistad.