O missionário escocês Robert Moffat (1795-1883) tem seu nome gravado nos livros de história da igreja por duas razões. A primeira delas é que ele desenvolveu um ministério pioneiro muito relevante na África do Sul. A necessidade de missionários naquela região do mundo era tão grande que ele, em 1840, retornou à terra natal a fim de recrutar mais obreiros. Isso aconteceu em meio a um inverno extremamente rigoroso. Ao chegar à igreja em que iria pregar, percebeu que apenas um pequeno grupo de pessoas resolveu sair de casa e enfrentar a fúria dos elementos climáticos. Além da decepção de ver pouca gente, Moffat ficou ainda mais desanimado ao perceber que havia apenas mulheres no grupo e o texto que ele havia escolhido pregar era Provérbios 8.4: “A vós outros, ó homens, clamo”. Ele ficou tão chateado que quase não notou a presença de um rapaz que estava lá para fazer manutenção no órgão da igreja. Pregou sua mensagem sem esperanças, sabendo que pouquíssimas mulheres seriam capazes de enfrentar as durezas da selva. Como previu, ninguém atendeu ao seu chamado. Entretanto, o jovem que dava manutenção no órgão ficou extasiado com o desafio e decidiu que seguiria os passos daquele pregador. Assim, ele se dedicou aos estudos, graduou-se em medicina e empregou o resto da sua vida ministrando a tribos longínquas na África. Seu nome era David Livingstone (1813-1873) e veio a ser um dos mais famosos missionários da história. Além de missionário, ele acabou se tornando genro de Robert Moffat — essa é a segunda razão pela qual o nome do Dr. Moffat figura nos livros de história.
O escritor do Salmo 123 sabia o que era se sentir decepcionado depois de nutrir planos gloriosos. Segundo a sequência dos “cânticos de romagem”, este provavelmente era cantado depois que os viajantes já tinham cruzado as portas de Jerusalém (Sl 122) e agora contemplavam não apenas a cidade, mas sua real condição. Nesse sentido, houve muitas épocas em que o entusiasmo durante a viagem e a exultação da chegada rapidamente se transformavam em decepção e tristeza ao ver as condições de vida da cidade gloriosa de Israel e local da habitação do Templo do Senhor. O salmo não é assinado por seu escritor, nem há referências de datação. Porém, trata-se de uma época de revezes para a cidade, para seus moradores e para todos os israelitas que para ali afluíam a fim de adorar no Templo.
Em várias ocasiões, durante a história de Israel no Antigo Testamento, houve circunstâncias de aperto para Jerusalém. Contudo, a descrição de desprezo e escárnio por parte de inimigos arrogantes, causando vergonha e sofrimento para Jerusalém e para os peregrinos, cabe quase exclusivamente ao período entre o retorno dos israelitas do cativeiro babilônico (538 a.C.) e a reconstrução dos muros da cidade por Neemias (445 a.C.). Nessa época, era exatamente assim que viviam os moradores da capital: oprimidos e zombados por seus vizinhos ao norte (Ed 4.4; 5.3; Ne 1.3; 2.19; 4.3; 6.9). Era isso que viam os peregrinos que chegavam a Jerusalém, cuja alegria de ir à cidade se tornava rapidamente uma decepção. Segundo aponta o salmo, tal decepção dava origem ao clamor a Deus. Nesse sentido, o Salmo 123 deixa transparecer quatro atitudes dos servos de Deus que se veem decepcionados com as condições de vida que têm de enfrentar em um mundo que serve à carne a ao diabo.
A primeira atitude do crente diante da decepção é a fé em Deus. Humanamente falando, as circunstâncias eram terríveis e não podiam ser evitadas com recursos pessoais dos israelitas. Se a situação era, de fato, o muro derrubado, os moradores da cidade eram presas fáceis de bandos de salteadores e de opositores à sua reconstrução, as “gentes da terra” (Ed 4.4). A defesa para isso seriam as muralhas, exatamente o que não possuíam. Por isso, sem recursos próprios, os israelitas desviavam seus olhos da segurança de muros altos e os lançavam ao protetor divino (v.1a): “A ti elevo os meus olhos”. A ação de olhar para o alto como expressão de confiança em Deus foi utilizada no Salmo 121 e era cantada pelos peregrinos no início da sua viagem. Porém, enquanto naquele salmo os olhos se voltavam para o alto dos montes, como busca pelo poder supremo do Senhor, neste salmo o olhar vai mais alto e encontra o Deus eterno habitando os céus, com um trono acima da Terra e de tudo que existe (v.1b): “Ó tu que habitas nos céus”. É com fé verdadeira que o olhar dos servos de Deus se eleva a ele, pois sabem que somente no seu poder há solução para problemas que fogem ao nosso controle. Além do mais, é uma fé baseada na dependência que o servo tem de Deus (v.2). A fé de quem não apenas conhece o Senhor e sabe do que ele é capaz, mas de quem necessita dele para a proteção e a provisão.
A segunda atitude diante da decepção é a paciência. Tendo se valido da ação de olhar a fim de exprimir a fé, o salmista desenvolve a figura (v.2): “Eis que, como os olhos dos servos atentam para a mão dos seus senhores e como os olhos da criada atentam para a mão da sua senhora, assim os nossos olhos atentam para o Senhor, nosso Deus, até que ele se compadeça de nós”. A ilustração dos servos atentos à mão dos seus senhores providencia um quadro duplo. O primeiro vem do fato de que os senhores, com gestos de mãos, comandavam seus servos, motivo pelo qual era essencial observar atenta e continuamente as suas mãos. Se o salmista chegou a pensar nisso, ele estaria recordando aos seus irmãos que, mesmo que atravessassem dificuldades, deviam permanecer no serviço de Deus e não se valer dos problemas como pretexto para serem infiéis. Entretanto, o final do versículo mostra que a razão do olhar não era receber ordens, mas aguardar a provisão benéfica. Como os servos recebiam o sustento dos seus senhores, olhar para suas mãos significa, primariamente nesse texto, aguardar a mão bondosa conceder o necessário. A ilustração traz a ideia do servo mantendo constantemente os olhos nas mãos do senhor, aguardando com paciência por aquilo que ele precisa. É essa a atitude encarecida pelo salmista em relação a Deus. Eles aguardavam pacientemente o dia no qual Deus, misericordiosamente, aliviaria seu sofrimento e inverteria a situação.
A terceira atitude é a esperança. A paciência dos israelitas, ao aguardar a libertação de Deus, não era mero otimismo infundado. Se a queda do muro, do Templo e da cidade, em 587 a.C., foi anunciada previamente pelos profetas (Is 64.10,11; Jr 7.34; 34.2; 38.17,18; Mq 3.12), a reconstrução da cidade, também (Is 44.26-28; 45.13; Ez 36.36). Além do mais, havia promessas de um grande ajuntamento futuro dos judeus dispersos pelo mundo na sua própria terra (Ez 37.14; 39.25-29), a terra que Deus prometeu perpetuamente a Abraão (Gn 13.14,15; 15.18-21). Pelas Escrituras, eles sabiam que o Messias, a partir de Jerusalém, reinaria sobre a nação restaurada e sobre as nações do mundo (Ob 17; Is 59.20; Mq 4.1-3). Portanto, não era apenas com paciência que o salmista e seus pares aguardavam a atuação graciosa de Deus, mas também com esperança. Uma esperança baseada nas promessas reveladas pelos profetas de Deus; esperança firme e dirigida pelas Escrituras.
A última atitude do crente diante da decepção é a inadequação. O termo inadequação aqui quer dizer a insatisfação com a situação presente e o desejo de ver se cumprir tudo que Deus preparou para seu povo. Significa que não buscamos um modo de nos acomodar ao mundo e ao seu sistema perverso de vida. Ao contrário, nos sentimos inadequados diante dos parâmetros corrompidos dos rebeldes. Isso, obviamente, causa no mundo oposição e desprezo a nós, como causou aos israelitas que retornaram do exílio (v.3b): “Pois estamos completamente fartos do desprezo”. Se uma marca da inadequação do povo de Deus ao sistema mundano é o desprezo que recebe, outra marca é o clamor a Deus por sua graça e favor (v.3a): “Mostra teu favor, ó Senhor, mostra teu favor”. Essa oração não visa a fazer com que os servos de Deus “dancem conforme a música”, mas sim ao favor de Deus confirmando suas promessas e firmando seu povo ao passo que julga o mundo mau. Tal inadequação também é vista no modo como o salmista enxerga os perdidos, não como pessoas a serem imitadas, mas reprovadas, pelo que os chama de “arrogantes” e “orgulhosos” (v.4): “A nossa alma está completamente farta do escárnio dos arrogantes, do desprezo dos orgulhosos”. Deve-se notar que tal visão não afeta o testemunho e os bons modos dos servos de Deus, de modo que se tornem, eles mesmos, arrogantes e orgulhosos. Em vez disso, faz deles homens que servem fielmente ao Senhor enquanto aguardam sua libertação.
Não é preciso muita argumentação para nos convencer de que vivemos tempos parecidos, não de ataques militares em uma cidade sem defesas, mas de oposição, perseguição, zombaria e desprezo por parte daqueles que rejeitam o Senhor Jesus como Deus e salvador. Por isso, nossos olhos também devem apontar para os céus, a fim de, pacientemente, esperarmos que Deus faça tudo que anunciou pelas Escrituras. E, assim como aqueles israelitas, devemos nos sentir incomodados com o mundanismo e não tranquilos e à vontade no meio do mal. Mantenhamos a fé verdadeira sabendo, a exemplo da história de Robert Moffat, que Deus é poderoso para tornar as decepções presentes em vitórias que ecoarão pelos séculos.