Quase todos nós já ouvimos a expressão “isso não vale um tostão furado”. O que pouca gente sabe é o que é um “tostão furado”. O tostão é uma moeda brasileira antiga – inspirada na moeda portuguesa –, feita de níquel, que valia cem réis – os réis circularam no Brasil desde o período Imperial até o governo de Getúlio Vargas. Porém, antes dele, havia o tostão furado, o qual equivalia a oitenta réis. No século 19, ele saiu de circulação para dar lugar ao tostão cheio, conhecido simplesmente como tostão. Seu valor não passava de dez centavos em relação ao cruzeiro antigo. Eram moedas que, sozinhas, compravam pouca coisa e serviam para dar troco de pagamentos maiores. Desse modo, dizer que alguém não tem um tostão significa não estar carregando dinheiro algum. Com o tostão furado, a coisa era pior, pois, além de valer 20% menos que o tostão cheio, perdeu totalmente seu valor ao ser substituído e sair do mercado. Por isso, falar que algo não vale um tostão furado significa que não há valor algum naquilo.
Olhando para essa expressão brasileira, podemos dizer que o salmista atravessou um momento em que sua própria vida não valeu um tostão furado no sentido de que esteve completamente à beira da morte. Ele deixa isso claro ao dizer (v.3) que “laços da morte me envolveram” – valendo-se dos dizeres de Davi ao se ver cercado por inimigos que queriam tirar sua vida (Sl 18.4). Contudo, o salmista não pereceu porque Deus o livrou da morte, preservando sua vida (v.6): “Eu estava desfalecido, mas ele me salvou”. Se até aqui a natureza de tal salvação não fica clara, ele resolve a questão afirmando (v.8): “Pois tu livraste a minha alma da morte” – deve-se observar que “alma” aqui não visa a indicar uma salvação de ordem espiritual, mas ao salmista como um todo, como se ele dissesse “tu me livraste da morte”. Diante disso, muitos comentaristas veem semelhanças notáveis entre as declarações desse salmista e a experiência de libertação da morte do rei Ezequias que, avisado de que iria morrer, ouviu do profeta Isaías que Deus lhe daria mais quinze anos de vida (Is 38). Alguns até sugerem que o próprio Ezequias seja o escritor do salmo. De qualquer modo, uma situação como a daquele rei que, achando-se doente e não vendo possibilidades humanas para impedir que sua vida se esvaísse, serve como um pano de fundo compatível com o salmo. Por isso, por meio de quatro ações do escritor do Salmo 116, podemos aprender sobre o procedimento adequado ao servo de Deus que vê que sua vida ruma para a condição de não valer um tostão furado.
Quando o salmista se viu impotente contra os riscos à sua vida e percebeu que só o Senhor, segundo seu plano, preserva seus servos, sua primeira ação foi demonstrar seu amor por Deus (vv.1-3). Ele inicia o salmo com esta declaração (v.1): “Eu amo o Senhor, pois ele ouve a minha voz, as minhas súplicas”. Apesar de parecer ser mais fácil amar a Deus quando tudo vai bem e quando a impressão é que a vida só conhece bênçãos, a situação desse homem passou pelo extremo oposto (v.3): “Laços da morte me envolveram e os assédios da sepultura me sobrevieram”. O escritor personifica a própria morte como um caçador que passou a persegui-lo com seus laços de armadilhas. Ele se sentiu sendo tragado pela sepultura onde jazeria morto. O resultado foi um abatimento profundo: “Eu fui acometido por angústia e aflição”. Mas é justamente nessa situação que sente que Deus tem um relacionamento com ele pautado pelo amor, já que o Senhor não foi alheio ou insensível ao seu sofrimento. Deus, na verdade, se mostrou muito interessado na sua situação e lhe tratou como alguém próximo e amado (v.2): “Pois inclinou seu ouvido para mim”. Inclinar o ouvido não significa apenas escutar, mas atender à oração. Assim, o salmista, em amor, se relaciona com Deus e se propõe fazê-lo por toda a sua vida: “Pelo que nos meus dias [de vida] eu o invocarei”.
A segunda ação foi levar a Deus seus pedidos (vv.4-9). Logo após fazer uma descrição vívida do seu sofrimento, ele declara sua reação (v.4): “Mas eu invoquei o nome do Senhor [dizendo]: ‘Ó Senhor, livra minha alma’”. Trata-se de um pedido por preservação da vida. Essa oração não foi feita sem esperança. O salmista contava com os atributos de Deus pelos quais ele age beneficamente para com seus servos (v.5): “O Senhor é compassivo e justo e o nosso Deus é misericordioso”. A resposta divina à oração do salmista moribundo foi positiva e realmente o preservou (v.6): “O Senhor guarda os simples. Eu estava desfalecido, mas ele me salvou”. Imediatamente, sua confiança na misericórdia de Deus lhe trouxe verdadeira paz em meio à tempestade, avistando o porto e a terra firme para os quais o Senhor conduziu o barco da sua vida (v.7): “Ó minha alma, volta ao lugar de descanso, pois o Senhor foi benevolente para contigo”. Se até aqui o tipo de libertação promovido pelo Senhor fica subentendido, o escritor, então, o descreve com todas as letras, revelando a resposta à sua oração (v.8): “Pois tu livraste a minha alma da morte, os meus olhos das lágrimas [e] os meus pés do tropeço”. O resultado final é que ele continuaria vivo e servindo a Deus (v.9): “Servirei ao Senhor nas regiões dos viventes”.
A terceira ação do salmista foi manter sua fé em Deus (vv.10-14). Crer em Deus depois de ver uma grande libertação não é raro. Entretanto, crer enquanto tudo que há em volta são problemas e dificuldades é algo mais difícil de se ver. Pois foi exatamente isso que o salmista fez. Ele creu em Deus no meio da aflição (v.10): “Eu confiei quando eu [ainda] dizia: ‘Estou muito aflito’”. Essa confiança fica em maior relevo quando ele expõe que não apenas estava sofrendo, mas que também estava desiludido com as pessoas e com sua capacidade de socorrê-lo (v.11): “Na minha fúria, eu disse: ‘Todo homem é mentiroso’”. Não é fácil ter fé em uma situação assim, mas o salmista creu e Deus correspondeu à sua confiança. Se os homens são falhos e infiéis, Deus é fiel e confiável. Essa constatação levou o escritor a meditar sobre o modo como ele procederia diante da ação de Deus (v.12): “Como retribuirei ao Senhor por todos os seus benefícios para comigo?”. A resposta que ele encontra é dupla. A primeira é demonstrar sua fé no Senhor, como se sua própria vida preservada agisse como um brinde público a Deus (v.13): “Erguerei a taça da salvação e invocarei o nome do Senhor”. A segunda é ser ele mesmo fiel, assim como Deus foi para com ele (v.14): “Cumprirei meus votos ao Senhor perante todo o seu povo”.
A última ação foi oferecer a Deus o devido louvor (vv.15-19). Ao introduzir um novo parágrafo, o escritor enaltece novamente a ação preservadora de Deus (v.15): “Custosa aos olhos do Senhor é a morte dos seus fiéis”. Apesar de esse texto normalmente ser traduzido com a palavra “preciosa” – fazendo parecer um coro aos dizeres de Paulo “o morrer é lucro” (Fp 1.21) –, o contexto geral do salmo aponta para o fato de que Deus não despreza seus servos na hora da morte. Ao contrário, ele sente o drama da morte dos seus fiéis, dá valor às suas vidas e, se assim for seu plano, os preserva da morte – algo que ele fez com esse servo (v.16). Devido a isso, o louvor toma conta das ações do salmista (v.17): “Oferecerei a ti sacrifício de ação de graças e invocarei o nome do Senhor”. Ele volta a afirmar sua fidelidade a Deus por meio do cumprimento dos seus votos diante do povo (v.18), acrescentando a informação de que o faria no templo do Senhor, diante de todos (v.19): “Nos átrios da casa do Senhor, no meio de Jerusalém”. Se o salmo começa com uma declaração de amor, termina com uma proclamação da glória de Deus: “Exaltai ao Senhor!”.
Olhando para essa experiência de um servo de Deus que se viu diante da morte, quando sua vida parecia não valer mais nada, somos encorajados quando, diante de diversas tribulações que a vida reserva a todos, nos sentimos desvalidos e inertes. Seja diante da morte, seja diante da vida atribulada, lembramos que para Deus nós temos muito valor e somos tratados como tal. Não somos, de modo algum, apenas um número na contabilidade divina, mas pessoas, servos amados, por quem Deus enviou seu próprio Filho a fim de nos substituir na condenação do pecado. O valor do Senhor Jesus Cristo na cruz nos lembra e nos firma em fé, sabendo nós que não é verdade que não valemos nem um tostão furado. Para Deus nós temos valor e ele nos tem em meio aos maiores cuidados, atenção e misericórdia.