Assisti a um filme, certa vez, baseado na obra de William Shakespeare, sobre o rei britânico Henrique V (1387-1422). Em alguns momentos, o filme é um pouco monótono, mas, depois de representar um discurso emocionante — no qual foi cunhada a expressão “band of brothers” — e a famosa batalha de Azincourt (25-10-1415), o rei diz algo que me marcou. Lembro-me desse momento do filme como se o estivesse vendo agora. O rei, interpretado pelo ator Kenneth Branagh, ao saber da vitória esmagadora sobre os franceses, diz, em tom reverente, que haveria morte para qualquer um que clamasse para si a responsabilidade daquela vitória ou que tomasse de Deus o louvor que pertencia somente a ele. Logo após, um soldado começa a cantar sozinho o hino Non nobis Domine — “Não a nós, Senhor” —, sendo seguido pelo restante do exército em uma das cenas mais emocionantes a que já assisti.
O Salmo 115 é o hino cuja letra foi cantada por esses vencedores e por muitos personagens, durante a história, que obtiveram vitórias fantásticas, mas que não clamaram para si o louvor, rendendo-o inteiramente a Deus. O contexto do salmo é uma situação de crise em Israel seguida pela atuação soberana e libertadora do Senhor. O que não se tem certeza é se o salmista está orando para que Deus liberte ou se o salmo é um agradecimento pela libertação já realizada. Apesar de parecer, a princípio, que a primeira opção se encaixa melhor, o tom positivo do salmo e a zombaria do salmista aos falsos deuses estrangeiros e aos seus adoradores sugerem que a libertação já veio e que o salmo visa a evidenciar a supremacia de Deus e a exaltar seu nome, vindicando sua honra diante do desprezo que as nações lhe demonstraram. Não fica excluída a possibilidade de que esse tom positivo se deva a uma confiança irrestrita por parte do salmista. Contudo, nesses casos é comum vermos mais lamento e súplicas do que o que temos nesse salmo. Além do mais, o v.1 é um louvor tão positivo que, a exemplo da história acima, sempre foi usado para glorificar a Deus por seus feitos libertadores e pelas vitórias concedidas aos servos. Em meio a isso, o salmista oferece quatro disposições que os servos de Deus devem manter para lhe oferecer um louvor digno e condizente com sua natureza e glória.
A primeira disposição dos servos de Deus para louvá-lo é a humildade (vv.1,2). O início do salmo coloca o salmista em um clamor para que Deus mostre sua glória ao mundo e, ao fazê-lo, não deixasse que homem algum fosse glorificado em lugar dele ou que compartilhasse do louvor que lhe é exclusivo (v.1): “Não a nós, Senhor, não a nós, mas dá glória ao teu nome por causa da tua lealdade e da tua fidelidade”. É como se ele dissesse: “Mostra a tua glória, ó Senhor, e não nos deixe pensar ou anunciar que somos gloriosos”. O salmista demonstra a verdadeira humildade que combina muito com a disposição de João Batista diante de Jesus: “Convém que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3.30). Isso fica mais em evidência quando se observa o contexto. A zombaria das nações estrangeiras sobre Israel afetava os israelitas pessoalmente. Entretanto, o escritor não clama por vindicação para si mesmo ou para a nação, mas para o nome de Deus (v.2): “Porque as nações diriam: ‘Onde está o Deus deles?’”. Esse desprezo é semelhante ao que foi demonstrado nas palavras de Rabsaqué, servo de Senaqueribe, quando ameaçou Jerusalém nos dias de Ezequias afirmando que nenhum deus tinha livrado seus povos dos assírios e, por isso, o Deus de Israel também não poderia livrá-los (2Rs 18.32-35). Diante disso, o salmista tem todo prazer em saber que o Senhor vindica sua glória e supremacia, agindo com “lealdade” e “fidelidade” para com seus servos. E mesmo havendo vindicação também do povo, o escritor do salmo se recusa e receber glórias para si, sendo ele mesmo humilde.
A segunda disposição dos servos de Deus para louvá-lo é a admiração (vv.3-8). Esse trecho mostra como a arrogância das nações opressoras foi abatida por Deus, de modo que o salmista o diz em um tom que chega a ser jocoso. É como se desse o troco em relação ao desprezo que os inimigos demonstraram pelo Deus verdadeiro durante a opressão de Israel. Ao fazê-lo, deixa transparecer a admiração que tem pelo Senhor e por tudo que ele faz (v.3): “Mas o nosso Deus está nos céus. Ele faz tudo que lhe agrada”. A admiração do salmista surge primeiro por Deus ter uma natureza acima da criação, descrita pela sua transcendência, e depois por ser soberano, tendo o poder de efetivar todos seus planos e desejos sem que ninguém possa impedi-lo (Jó 42.2). Em consequência disso, a arrogância das nações é abatida na figura dos seus falsos deuses (v.4): “Os ídolos deles são de prata e ouro, obras das mãos de homens”. Essa nulidade é enfatizada até o ponto de os falsos deuses se tornarem desprezíveis e objeto de chacota aos olhos de todos (vv.5-7). Contudo, o “tapa com luva de pelica” não se destina a deuses inexistentes, mas ao insensatos adoradores de objetos feitos pelo próprio homem (v.8): “Sejam como eles os que os fazem, todos que confiam neles”. Para o salmista, o terror anunciado pelos adoradores dos falsos deuses nada era comparado à ação do Deus glorioso e admirável que os reduz a nada.
A terceira disposição é a confiança (vv.9-11). Se ficou clara a insensatez de confiar em deuses de ouro e prata feitos por artífices, a confiança no Deus criador de tudo que existe é uma ação encarecida pelo salmo (v.9): “Ó Israel, confia no Senhor! Ele é o socorro e o escudo deles”. É nítido o tom de comparação entre a fé verdadeira dos servos de Deus e a fé insensata dos idólatras. O interessante é a ênfase que o salmista dá na razão pela qual Israel deve confiar em Deus, pois a segunda parte desse versículo se repete nos dois seguintes. Assim, a casa sacerdotal, talvez por ter sido afetada pelos inimigos e obrigada a interromper os sacrifícios, é chamada a confiar (v.10): “Ó casa de Arão, confia no Senhor! Ele é o socorro e o escudo deles”. Em seguida, completando uma tríade bastante sugestiva, diz (v.11): “Ó [vós] que temem o Senhor, confiai no Senhor! Ele é o socorro e o escudo deles”. Não há como se enquadrar como servo do Senhor que se dedica ao seu louvor sem confiança em quem Deus é e em suas promessas.
Finalmente, a última disposição para louvar a Deus é a gratidão (vv.12-18). Apesar do aperto que Israel passou, a libertação não trouxe atenção somente sobre a condição benéfica — o que é muito comum acontecer. Em lugar disso, o salmista olha para a causa da condição que é a própria atuação de Deus abençoando seu povo (vv.12,13): “O Senhor se lembrou de nós e nos abençoará. Abençoará a casa de Israel. Abençoará a casa de Arão. Abençoará os que temem o Senhor, os pequenos juntamente com os grandes”. Essa ação diretamente ligada ao livramento da opressão é seguida por uma restauração do povo, fazendo-o aumentar novamente em número e força (v.14): “O Senhor vos fará aumentar, a vós e a vossos filhos” A razão para isso é diretamente a bênção de Deus (v.15): “Vós sois abençoados pelo Senhor criador dos céus e da Terra”. O salmista não adora a Deus somente pelo que ele faz, mas também por quem é, ou seja, um Deus acima dos homens (v.16): “Os céus são os céus do Senhor, mas ele deu a Terra aos filhos dos homens”. Finalmente, o louvor é declarado pelo fato de Deus não tê-los deixado perecer, razão pela qual é possível que eles lhe rendam todo louvor (vv.17,18): “Os mortos não exaltam o Senhor, nem aqueles que descem ao lugar de silêncio. Mas nós louvaremos o Senhor de agora até a eternidade. Exaltai ao Senhor!”. Aqui, o salmista não diz que não há vida após a morte, mas que Deus os preservou de morrer e, por isso, eles o exaltavam e o exaltariam para sempre.
Como é comum ouvirmos membros de igreja dizer “preguei a um incrédulo e o converti”, “fiz a igreja crescer”, “eu sustento esse trabalho sobre meus ombros”, “obtive a vitória que almejávamos” ou “veja como sou importante para o Senhor”. O crente que entende, como o salmista, quem é Deus, diz: “O Senhor me deu a oportunidade de pregar a um incrédulo a fim de que ele o convertesse”, “Deus tem dado crescimento à igreja”, “o Senhor sustenta esse trabalho por sua graça apesar de mim”, “Deus nos concedeu a vitória que almejávamos” e “veja como sou dependente do Senhor”. Com isso, esses crentes não apenas demonstram uma teologia sadia e verdadeiramente bíblica, como as disposições necessárias para ser um servo autêntico e um adorador do Deus glorioso. Precisamos abandonar as pretensões arrogantes de sermos grandes e, em lugar disso, engrandecer nosso soberano Deus. Com essa disposição, assumiremos o lugar que é nosso, em humildade e dependência, e reservaremos para Deus, em nosso coração, o lugar que é dele e que nada nem ninguém podem ocupar. Não a nós, Senhor, mas ao teu nome!